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BIOÉTICA E DIREITO MÉDICO

 

O PRINCÍPIO DA BENEFICÊNCIA NA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO *

JOSÉ GERALDO DE FREITAS DRUMOND **

 

* Conferência proferida no I Simpósio Iberoamericano de Direito Médico, Montevidéu (Uruguai), de 28 a 30 de setembro de 2000.
** Professor de Bioética e Ética Médica, Reitor da Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros -MG, Brasil.

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

A medicina e os médicos acham-se fortemente impregnados pelo paternalismo beneficente de Hipócrates. No juramento hipocrático está gravado: "Aplicarei os regimes para o bem dos doentes, segundo o meu saber e a minha razão, nunca para prejudicar ou fazer mal a quem quer que seja" . Assim, o médico de Cós e os seus sucessivos discípulos, até os dias de hoje, sempre praticaram o "bonum facere" de acordo com o " seu saber" e a "a sua razão" , ou seja, segundo o seu critério de julgamento profissional, ficando o paciente sempre na condição de receptor passivo do bem que lhe é concedido, cujos critérios da ação escapam do seu conhecimento e possível controle.

Há, portanto, na medicina hipocrática, uma beneficência verticalmente paternalista que não permite ao paciente, objetivo maior do ato médico, sequer manifestar o seu interesse em recebê-lo, já que parece estar implícito no julgamento do profissional da medicina que, tratando-se de uma ação benfeitora, não haveria porque recusá-la. Daí que, muitas vezes, a beneficência médica representa não mais que um paternalismo impositivo e cerceador da autonomia do paciente.

No entanto, o encontro da civilização moderna com a democracia produziu mudanças profundas nas relações sociais, alcançando todos os segmentos profissionais. Por conseqüência, mudaram-se as relações do médico com o paciente, deslocando-se a verticalidade impositiva e imperial do médico para a horizontalidade democrática na tomada de decisões sobre a saúde de cada indivíduo.

Mas, apesar dos avanços, até agora verificados nessa área, ainda persiste, entre o médico e o seu paciente, uma relação de poder de quem detém a técnica e a ciência para quem as ignora, além de uma ligação assimétrica determinada pela postura submissa que o próprio estado alterado de saúde proporciona ao paciente, que se comporta como vítima do mundo ou de si mesmo.

As mudanças propiciadas pelo aparecimento das sucessivas gerações de direito, como bem descreveu Norberto Bobbio, em "A era dos direitos", fizeram com que o cidadão conquistasse, de modo definitivo, o direito de decidir sobre si mesmo, inclusive, e principalmente, sobre as questões mais particulares de seu estado de saúde.

Neste contexto social, fortemente propulsor de uma nova abordagem nas relações sociais surge nos Estados Unidos da América, através de Potter, uma nova ética, a qual denominou Bioética que, no seu entender, promoveria a transição do homem rumo a um futuro tecnológico capaz de ampliar extraordinariamente a sua vida, salvaguardando, porém, a sua dignidade. O vocábulo bioética nasceu exatamente da convicção que tinha Potter no futuro da humanidade, iluminado pelas conquistas da biologia e dos biólogos. Não estava enganado. A decifração do genoma, com todas as suas possíveis implicações e, inclusive, com a perspectiva da clonagem humana são exemplos de que estamos à véspera de um "Admirável Mundo Novo", antecipado por Huxley, se não houver, em contrapartida, a adoção de normas que impeçam qualquer tentativa de agressão à dignidade humana.

Certamente, como bem se expressa França, a última batalha pela dignidade humana será travada, não em torno de uma mesa de estrategistas militares ou no desenvolvimento de armas de ataque ou defesa mas, sim, nos laboratórios de pesquisa da genética molecular.

A prática médica sempre teve como princípio norteador a beneficência, que visa o bem do paciente, o seu bem-estar e os seus interesses, cujos benefícios são estabelecidos mediante critérios aplicados no conhecimento médico. Para Pellegrino a medicina como atividade humana é, por necessidade, uma forma de beneficência. Beneficência que deve significar a promoção da saúde e a prevenção da doença, sopesando bens e males, mas buscando sempre a predominância dos primeiros. A beneficência não deve causar danos – daí se inferindo um segundo princípio básico de Beauchamp e Childress, que é o da não-maleficência – mas maximizar benefícios e minimizar prejuízos, como foi descrito no Relatório Belmont.

Não pode o médico exercer a beneficência de modo absoluto, mas sim dentro dos limites estabelecidos pela dignidade intrínseca a cada pessoa, respeitando-lhe a liberdade de decidir sobre si mesma, ao que se dá o nome de autonomia.

 

OS LIMITES DA BENEFICÊNCIA

Desde o seu nascimento a Bioética viu-se, logo, incorporada a quatro grandes princípios: a beneficência, a não-maleficência, a justiça e a autonomia.

A beneficência é entendida como o princípio bioético da promoção do bem e distingue-se da tradicional beneficência hipocrática por quatro fatores limitantes de sua ação: a necessidade de definir o que é "bem" para o paciente; a não aceitação do "paternalismo" incrustado na beneficência médica tradicional; a autonomia do paciente em decidir o que é melhor para si mesmo e, finalmente, a utilização dos critérios de justiça, que, na área da saúde, é traduzida por eqüidade ou garantia de prioridade de acesso daqueles mais excluídos socialmente aos serviços de saúde.

A autonomia é a prerrogativa do paciente em consentir, ou seja, de decidir junto com o médico sobre quaisquer práticas de intervenção na sua realidade de saúde. Toda intervenção médica para ser realizada necessita - exceção feita às urgências - do consentimento prévio do paciente ou de seu representante legal.

A autonomia dá autoridade ao paciente para tomar as suas próprias decisões e é o que, hoje, tende a prevalecer na relação médico-paciente, em detrimento da beneficência hipocrática. Quando colocadas em contraposição, a autonomia e a beneficência geram forte tensão no relacionamento médico-paciente, podendo provocar conflitos por vezes irreconciliáveis. No entanto, é possível notar algumas variações na relação entre autonomia e beneficência, em algumas sociedades. Assim, é forte a predominância da autonomia entre os povos anglo-saxões, enquanto entre nós, povos latinos, a beneficência ainda prevalece norteando os atos médicos.

Como direito do paciente, a autonomia deve estar adequadamente contrabalançada à beneficência, que é um dever do médico. Por outro lado, a autonomia está condicionada a capacidade de consentir do paciente e, quando ocorrer a sua limitação (em razão da própria doença, de menoridade, retardo ou transtornos mentais, etc.), a tomada de decisão sobre o paciente passará aos seus responsáveis legais.

 

A BENEFICÊNCIA E A RESPONSABILIDADE MÉDICA

O desrespeito à autonomia representa, pois, uma violação aos direitos do paciente e uma transgressão ética e legal. Para Bobbio "os direitos nascem quando aumenta o poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o processo tecnológico (a capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens) – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências".

As constituições dos estados modernos têm consignado o princípio da liberdade individual, exceção feita aos casos em que a lei definir. A Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 5º, no seu inciso II, assim determina: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei".

De igual forma, a nossa legislação ordinária, civil e penal, consagrou o princípio da autonomia, restringindo-a em casos bastante específicos. A responsabilidade civil do médico, por seu turno, está estribada no princípio jurídico da obrigação da reparação do dano. No Brasil, o Código Civil estatui, no seu artigo 159, "verbis": "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano". Em outro artigo, o Código Civil brasileiro trata especificamente da profissão médica: "Os médicos, cirurgiões, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento" (artigo 1545).

Alexander Lacassagne já havia definido a responsabilidade médica como a obrigação que os médicos podem sofrer em razão das faltas cometidas durante o exercício da sua profissão. Dizia o grande Mestre da Medicina Legal: "Nossa profissão sofre atualmente uma crise: fala-se muito mal dos médicos. Diariamente são atacados pelo público e, na imprensa, são o alvo das críticas mais acerbas" (Precis da Médicin Legale, Masson Editeurs, Paris, 1906, p. 55). Depois, veio a jurisprudência firmada pelo Procurador-Geral da França, Dupin, que fixou, indiscutivelmente, a doutrina da responsabilidade médica, a despeito da beneficência implícita, "a priori", nas suas ações. Hoje, aceita-se como incontestável que o médico está sujeito às sanções da lei. É certo, por outro lado, que nas aplicações destas sanções os tribunais devem ser prudentes e que, em qualquer situação de apuração da responsabilidade profissional, a medicina não corre risco de sustar o seu progresso ou ter o seu prestígio abalado.

Assim, não se duvida mais que à sociedade atual cabe o direito e, ao Estado, o dever de responsabilizar o médico que infringir as regras fundamentais do agir profissional.

À liberdade do exercício da medicina, como de qualquer outra profissão, correspondem deveres éticos e jurídicos, quais sejam: a indispensável competência, a necessária diligência e a absoluta seriedade no manejo das técnicas e dos juízos de avaliação próprios da arte, o que denominamos de "Lex artis".

Destarte, no exame jurídico da prática profissional é necessário admitir-se, como regra geral, que a obrigação do profissional é a de meios, ou seja a de tudo diligenciar em favor do paciente, sem, contudo, garantir alcançar sempre um resultado bem sucedido. Não se incluem nesta categoria a falta grosseira, a ausência do dever de vigilância ou uma prática de abuso, os quais excedem os limites da arte e da ciência profissionais causando um erro tão evidente que não haverá dificuldade em constatá-lo e, em conseqüência, puni-lo.

A assistência médica não pode ser igualada a uma mera cobrança contratual de prestação de serviços, a uma empreitada onde estão em jogo interesses materiais e quando não existe a contraditória e paradoxal realidade médica do ser humano.

No entanto, é forçoso reconhecer que a medicina interpôs entre o médico e o paciente um extraordinário arsenal tecnológico, que deteriorou o seu relacionamento, tornando este cada vez mais frio e impessoal. É, sobretudo, esta deficiente relação que encoraja os pacientes a demandar contra médicos junto aos tribunais. Nesses casos, a demanda civil contra os profissionais da medicina representa, em geral, mais um ato de vingança do que propriamente interesse financeiro.

Deve-se considerar, ainda, que a atividade médica nos dias de hoje é, cada vez mais, uma atividade de risco que pode, por conseqüência, produzir danos a outrem sem que o médico tenha esta intenção e mesmo que muitos destes riscos sejam assumidos em benefício do próprio paciente.

 

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO

Desde os primórdios da civilização foram criados códigos que puniam especialmente o dano, a lesão e o homicídio culposo e, considerando-se a extrema relevância da atividade médica, estabeleceu-se toda uma legislação especifica para o comportamento profissional do médico.

Há três milênios o Código de Hamurabi já punia severamente o médico que errasse no tratamento de seu paciente. No século V, a Lei Aquília fixou, no Direito Romano, a generalização da responsabilidade civil do profissional da medicina. Mas foi na França do século XIX que a doutrina da responsabilidade médica se assentou, definitivamente, através do Procurador Geral Dupin, deixando um grande legado ao Direito contemporâneo.

Em brilhante parecer sobre um caso de erro médico, que interessou toda a opinião pública francesa no ano de 1835 e rebatendo os argumentos da Academia de Medicina a favor do mandato ilimitado do médico sobre o paciente, Dupin firmou a seguinte jurisprudência:

"1. O médico e o cirurgião não são indefinidamente responsáveis, porém o são às vezes; não o são sempre, mas não se pode dizer que não o sejam jamais. Fica a cargo do juiz determinar cada caso, sem afastar-se dessa noção fundamental: para que um homem seja considerado responsável por um ato cometido no exercício profissional, é necessário que haja cometido uma falta nesse ato; tenha sido possível agir com mais vigilância sobre si mesmo ou sobre os seus atos e que a ignorância sobre esse ponto não seja admissível em sua profissão.

2. Para que haja responsabilidade civil, não é necessário precisar se existiu intenção, basta que tenha havido negligência, imprudência, imperícia grosseira e, portanto inescusáveis.

3. Aos tribunais corresponde aplicar a lei com discernimento, com moderação, deixando para a ciência toda a latitude de que se necessita, dando, porém, à justiça e ao direito comum tudo o que lhe pertence."

O Acórdão da Corte de Cassação de Paris estabeleceu definitivamente a responsabilidade contratual dos médicos: "entre o médico e o seu cliente se forma um verdadeiro contrato que se não comporta, evidentemente, a obrigação de curar o doente, ao menos compreende a de proporcionar-lhe cuidados" (Câmara Civil da Corte de Cassação de Paris, em 20/05/36).

Na realidade, como preleciona Pio Avecone em "La responsabilità penale del médico", a culpa profissional do médico constitui um dos problemas científicos e deontológicos, antes que jurídicos, mais antigos, objeto de debates potencialmente infinitos, dada a natureza particular da atividade médica.

Na data de 18 de janeiro de 2000, a Primeira Instância Civil da Corte de Cassação de Paris condenou um médico por não ter informado ao seu paciente, portador de uma forte miopia, do perigo de uma intervenção de catarata com anestesia local, firmando a seguinte jurisprudência: 1) a decisão de aceitar ou não a intervenção médica é do paciente; 2) ao médico cabe propor o tratamento e esclarecer o paciente, com informações adequadas, sobre os riscos; e 3) o paciente assume os riscos da decisão tomada.

 

Se a medicina e o médico são falíveis (o que é verdade para todas as demais áreas do conhecimento e os seus respectivos profissionais), não se pode eximir o direito alheio quando por negligência, imperícia e imprudência, o profissional causar prejuízo a outrem. Com respeito a esta questão é princípio basilar da responsabilidade civil, mesmo naqueles contratos que pressupõem um perigo, uma obrigação de garantia.

O ponto fulcral do julgamento de toda essa questão de erro médico está na caracterização da modalidade de obrigações do contrato celebrado entre o médico e o seu cliente. Estas obrigações seriam de meios ou de resultados?

Dentro do conteúdo das obrigações contratuais positivas, onde se exige do devedor um comportamento ativo de "dar ou de fazer alguma coisa", são conhecidas duas modalidades de obrigações: a de meios e a de resultado.

Na primeira existe um compromisso de utilização de todos os recursos disponíveis para se obter o melhor resultado, sem, contudo, ver-se obrigado a alcançar esse êxito, tão justo e tão legítimo. Busca-se, é claro, um resultado, mas em não se cumprindo – e inexistindo a culpa do devedor - não há o que cobrar.

Na obrigação de resultado, a prestação de serviço tem um fim definido: se não houver o resultado esperado, há inadimplência e o devedor assume o ônus por não satisfazer a obrigação que prometeu.

Pelo que se entende do ato médico, na sua complexidade e no seu aspecto conjuntural, a responsabilidade civil do profissional só pode comportar uma obrigação de meios ou de diligência , onde o próprio empenho do médico é o objeto do contrato, sem compromisso de resultado. Isso, é claro, não desobriga o médico de empenhar-se da melhor maneira e usar de todos os recursos necessários e disponíveis em favor do seu paciente.

Não se pode falar em culpa se ficar provado que, apesar de todo o empenho profissional, não se alcançou o resultado desejado, ou que a evolução da doença escapou ao conhecimento e ao controle do médico, mesmo tendo ele agido dentro dos padrões técnico-científicos da profissão, a chamada "lex artis".

Hoje, mesmo em especialidades antes consideradas como de obrigação de resultado, como na cirurgia puramente estética, já se olha com reserva o conceito radical de êxito absoluto, pois o mais correto é sempre guiar-se pelas circunstâncias de cada caso. Do contrário, é se contrapor à própria natureza e à lógica dos fatos.

 

Assim, admite-se como regra geral que a obrigação do médico é a de meios, mesmo porque o objeto do seu contrato é a própria assistência ao paciente; ocasião em que se compromete a empregar todos os recursos ao seu alcance, sem no entanto poder garantir sempre um sucesso. Não poderá ser considerado culpado se se chegar a uma conclusão de que todo empenho foi inútil, face a inexorabilidade do caso, quando o profissional agiu de acordo com a "lei da arte", ou seja, quando os meios empregados eram de uso habitual e sem contra-indicações. Punir em tais circunstâncias, alegando-se obstinadamente uma "obrigação de resultado", não seria apenas um exagero. Seria uma iniqüidade, como bem assinala França.

Observa-se, atualmente, que o consagrado conceito subjetivo da culpa, no campo da responsabilidade civil, parece estar cedendo terreno ao conceito de risco, no qual o autor responde somente pelo dano causado, isentando-se apenas nos casos de força maior; culpa da vítima; atos de terceiros; ou inexistência de nexo causal.

Daí se conclui que toda vez que ficar comprovado o nexo de causa e efeito na aplicação da teoria do risco promoveria a reparação do dano, beneficiando direta ou indiretamente todos os envolvidos.

A responsabilidade civil do médico é um instituto jurídico cuja existência está vinculada ao principio basilar do direito, que obriga qualquer profissional a responder por prejuízos causados a outrem, cometidos no exercício de uma profissão, conseqüentes à negligência, imperícia ou imprudência.

 

CONCLUSÃO

 

 

Dentre todas as profissões, criadas pelas necessidades sociais, a Medicina parece ser a mais difícil de ser exercida mormente do ponto de vista legal, dada a responsabilidade que se requer daqueles que atuam nesta área, cujo objetivo maior é a preservação da vida e da saúde do ser humano.

O diploma de médico é uma prova oficial do conhecimento científico, ou seja, do domínio de um conteúdo e de suas respectivas habilidades. Já a moral profissional estará sendo demonstrada, diuturnamente, durante toda a vida. Assim mesmo, a melhor formação universitária e a mais alta especialização profissional não significam autorização para o profissional agir indistintamente.

O exercício da medicina, por suas peculiaridades, propiciará sempre a possibilidade de dano a outrem. Este risco, inerente ao exercício médico, deverá ser sempre a preocupação do bom profissional.

O erro profissional aparece, então, como conseqüência de uma série de fatores, entre os quais ressaltam-se os causados pela personalidade de quem exerce a Medicina, sendo, portanto, de caráter subjetivo; os derivados de má formação profissional(pessoal ou escolar); os provenientes do sistema ou modelo de saúde vigente; e, por fim, aqueles produzidos pelo meio social em que o médico atua.

O erro é inerente à condição humana e, desta forma, não é possível eliminá-lo efetivamente. O médico, humano que é, está, também, sujeito a ele, mesmo que detenha a mais aguçada consciência profissional. É esta conscientização que torna o profissional mais prudente para cada ação, de modo a minimizar a sua margem de erro.

O que efetivamente ninguém duvida é que o diploma de médico não significa um passaporte para a impunidade. No início do século, um dos luminares da Medicina Legal brasileira, Souza Lima, já afirmava que no Brasil a condescendência, quase ilimitada, para com os médicos poderia levar à grande inconveniência de ver firmada, na opinião pública, o errôneo e pernicioso pré-conceito de que o diploma de médico lhe confere o privilégio da irresponsabilidade.

Este final de século e milênio tem sido caracterizado pela prodigalidade no avanço do conhecimento e, paradoxalmente, pelo surgimento de situações conflituosas em diversos campos da atividade humana, como na prática médica, que se viu conturbada pela crescente incorporação tecnológica com repercussões negativas sobre o humanismo hipocrático.

As transformações sociais, experimentadas no século XX, definiram novos padrões de comportamento na relação médico-paciente influenciados, principalmente, por uma progressiva consciência da população sobre os seus direitos, trazendo para esta relação mais participação, e portanto, mais democracia.

Sucede, pois, uma progressiva, porém vigorosa, transformação da velha moral paternalista, deontológica e profissional, em direção a uma nova postura ética autonomista, democrática e social.

Relacionar-se harmoniosamente com o paciente deixou de ser uma concessão do profissional da medicina para se tornar uma imposição dos novos tempos. A qualidade dessa relação é que vai determinar o diferencial no atendimento, construindo o conceito do médico junto à sociedade.

Num mundo automatizado, interligado por uma profusão de controles eletrônicos que interferem na maioria das atividades humanas, o médico jamais poderá olvidar de um dos pilares que sustentam a sua profissão, qual seja, a atenção ao paciente.

Daí que a maioria das queixas de pacientes contra médicos no Brasil - que vem se avolumando progressivamente nos últimos anos, a ponto de freqüentar, com habitualidade, o noticiário - se refere a distúrbios na relação médico-paciente. Essas queixas chegam diariamente aos Conselhos de Medicina, muitas vezes sob a acusação de erro médico.

As reclamações que mais se destacam no atendimento médico são a pouca ou indevida atenção ao paciente durante a consulta, a espera prolongada para o atendimento e o exagerado interesse financeiro manifestado por alguns profissionais.

Não bastam, pois, o conhecimento e a habilidade técnica. É necessário que o médico demonstre sempre estar interessado nas pessoas, promovendo, além de empatia e respeito, capacidade para ouvir; argúcia no observar; e a consciência de suas limitações.

Por outro lado, a saúde não é uma questão de exclusiva responsabilidade médica, mas de toda a sociedade e esta tem-se organizado no sentido de exigir mais e melhores condições de atenção à saúde, cobrando os benefícios que a ciência médica colocou à disposição apenas a uma fatia minoritária da população.

O médico não pode abrir mão de princípios milenares que o estimulam a continuar buscando uma medicina calcada na beneficência, na não-maleficência, na justiça, entendida como eqüidade social, e na autonomia do paciente. Deve, sim, buscar uma relação médico/paciente ideal baseada na transparência, lealdade e confiança mútua.

Para isso, é importante esclarecer ao paciente sobre a natureza contratual da prestação de serviços médicos, onde cabe ao profissional a obrigação de ofertar os meios ao seu alcance, e ao contratante, a responsabilidade do tratamento e dos honorários, pagos por ele ou pelo conjunto da sociedade, através do Estado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

    • BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992.
    • DRUMOND, José Geraldo de Freitas, GOMES Júlio Cezar Meirelles e FRANÇA, Genival Veloso de. Erro Médico. 2ª Edição, editora Unimontes, Montes Claros (MG), 2000.
    • FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 6ª ed., Fundo Editorial Byk-Procienx, São Paulo, 1994.
    • HUXLEY, Aldous Leonard. Admirável Mundo Novo. 17ª ed., São Paulo, editora Globo, 1989.
    • KIPPER, Délio José e CLOTET, Joaquim. Princípios da beneficência e não-maleficência. In: Costa, Sérgio Ibiapina et al. Iniciação à Bioética. Brasília – (DF): Conselho Federal de Medicina, 1998. P. 37-51.
    • PELLEGRINO E. D. e THOMASMA D.C. The future of Bioethics. Cambridge Quarterly of Health Care Ethics, 1997; 6: 373 – 5.
    • POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: a Bridge to the future. Englewood Clifs, New Jersey: Prentice Hall, 1971.

 

 

 


 
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